quinta-feira, 7 de abril de 2011

Um desses

            Descambou para o Plano e nunca mais entornou. Passou a viver no coração do Brasil, zoava. Vivia nas asas, acima e abaixo delas, escarafunchava cada nesga daqueles prédios, dutos, corredores de ar, passagens subterrâneas, bunkers camuflados na cidade, restos de arquitetura, escombros de desconstruções nieméricas. Leque raquítico, longilíneo, linha da arquitetuta de gente. Dormia todo dia num buraco do poder. Muitas vezes abrigava-se entre gente sem-teto, sem-emprego, sem-comida, que se enfileirava em longas avenidas. Temia os vândalos e os matadores de gente sem dono. Cidade cheia de maníaco. Por isso armava-se, tinha canivete feito de estilete, subproduto do medo, objeto-dejeto-desejo. Fazia correria mas amanhecia, no máximo, caído nas 16. Muitas vezes caminhava por dias, noutras estacionava nos arredores do em redor. Fogueiras a arder o drama do Cerrado. Dormia quente neste crepitar. O resto do tempo vivia a vida em pontos desbaratados para não ser caçado [muitas vezes dormia no box do banheiro de um supermercado]. Caminhava durante o dia, pedia esmolas, colhia frutas, escondia objetos, pedaços de móveis – num amealhar de formiguinha – , depois, almoço de qualquer coisa em qualquer lugar, Paranoá à tarde, JK a pé, todinha, até o eixo monumental, a rodoviária – lugar para ele somente de chegada – uma parada no Cruzeiro, onde rezava – tudo errado – depois, a ida à vila militar. Foi lá que levou o tiro: o abestado rastejou até a guarita e ficou mais de dez minutos escondido, esperando o guarda sair. Quando saiu, pulou no pescoço com canivete ameaçando degolar o coitado. Pegou o fuzil das mãos do cadete e fugiu por aí, pro Plano. Plano sem meta, meta sem lógica, lógica sem razão. Estava "fodendo" a Filosofia. Estacou o carro no meio da rua com a arma apontada para a cabeça do miolo mole do motorista: tocaípromecdonaldisdasanorteseufiadaputa. Fez o cara ainda passar no drive-thru e comprar “comida”. Lavou muitos carros ali perto, na entrequadra, para conseguir um tênis prata e outras porcarias da Feira do Paraguay. Aquilo era o mais longe que ia fora do Plano. Tinha medo de não voltar. Se pudesse voltava para dentro da terra, acreditava que era de lá que se vinha: se a gente morre e vai pra baixo da terra, gente viva também só deve vir de lá, véio. Acreditava árido, mente agreste, medos reticentes da indigência de tudo que é sabido. Partido ao meio, ausente de seus atos, feito terra sem pedras, feito árvore queimada e palavras ressequidas. Sentia falta do que nem conhecia e invejava sentimentos que queria experimentar, porque da tevê: beijo na boca e margarina no pão. Nunca teve conforto no saco em que dormia. Roubar nunca roubou mas tomou muito emprestado. Beber nunca bebeu mas sempre estava bêbado da incerteza de suas pernas: seu vagar periclitante feito passos ébrios, pra lá e pra cá, um destino sem destino. Fumava beque todo dia embaixo dos pilotis, com os burgueses. Mandou ver os dois sanduíches e tudo mais que havia no saco pardo. Fez o cara dirigir até a UnB e lá teve sua primeira e única aula ao volante. Depois de aprender o be-a-bá, mandou descer e gritou: Corre! O cara correu e deixou um rastro de merda pelo caminho. Saiu à toda, cantando pneus. Dirigiu a 150 km/h, desrespeitou semáforos, placas, pardais, faixas e tudo. Aquele teria sido, talvez, o melhor momento de sua vida. Vento no rosto. Brisa de mar. Pensou em sair do Plano pela primeira vez, pegar a Belém-Brasília - estrada para ele, só de ida - e ir ao litoral distante. Sabia de um tio que morava no Pará. Irmão da mãe. Corno-manso! Sustenta a mulher pros outros, repetia. Ela mesma nem atinava para a família: filho meu, caiu no mundo saiu andando. Foi o que fez na carona. Desceu do caminhão na Água Mineral: mundo estranho essa Brasília. Nunca encontrou seu início. Tudo foi-lhe apenas meios. Andava a esmo por amplos gramados e, logo, estava enredado por tesouras. Quantas vezes caiu do Cerrado para as vias sem perceber. Estava ainda recortado por ressentimentos: fome e espancamento. Tinha o corpo marcado por queimaduras de cigarro. Havia quem pensasse que gostava de mutilar-se, já não houvesse sido mutilado de si o gosto de se gostar. Logo a sirene da polícia ecoou na colina e avançou, ainda, mais um sinal. Fez todo tipo de trapalhada que coube à sua incompetência ao volante: quase matou um indigente. Um matando outro, pensou afoito. Viu no retrovisor a luz vermelha e acelerou, fez chama na centelha e entrou no acesso à outra avenida a 180 km/h. Aprendeu a “estar-não-estando”, a “ficar de passagem”, a “estar voltando para onde veio”, a “não estar a esmo”. Costumava levar uma sacola de supermercado, às vezes, uma de butique. Sabia do efeito do consumo: é-se mais pobre quanto mais humilde. Defendia a vida em marcas. Vendeu bugiganga, fez malabarismos de horti-fruti no semáforo. Foi quase trabalhador, mas foi mais mendicante. Vivia na Torre, no Parque da Cidade que, às vezes, cruzava todo para ir ao outro lado – porque ele se sentia mais do Norte – ver o mundo de outros lagos. Porque não acreditava ser apenas um. Ver à distância, que era imensa, demorava meio dia para cruzar e no caminho encontrava todo tipo de gente. Quanto se anda nessa capital , pé firme na terra batida, vermelha garrida, sangue no verde e amarelo nacional. Fez barbaridades, estava acostumado a viver no limite. Acelerou ainda mais. Teve da velocidade a sensação de morte iminente que, em meio ao delírio, ouviu um seu próprio grito. Quase bailou na curva. Entrou na Esplanada dos Ministérios à toda, perseguido por dois carros da polícia. Sirene ecoando no céu aberto azul-turquesa, ora, aziago. Caiu com o carro no espelho d´água do Palácio do Planalto. Nunca conheceu o mar ainda que usasse camiseta com estampa de surf, restos de mendicância. Quando cansava de tudo e pensava em sumir, queria subir para o litoral. Num dia desses, passou uma mistureba nos pêlos do corpo e estatelou-se ao sol até ficar loiro. Era uma gente lutadora seus parceiros: cavaleiros novos-medievais que circulavam as ruas da capital em bigas, feitas à moda antiga, a prego e madeira, puxadas por pangarés no cabresto, em mãos de solitários guerreiros urbanos que, nelas carregam famílias inteiras, todos em pé, conduzem a galope entre os carros, entre olhares. Cena de cinema. Ele desceu do carro armado até os dentes, gritaram. Cercaram-no: mãos ao alto! Toda a cena. Soldados camuflados rolaram gramado abaixo. Ele nem teve tempo de perceber. Foi desarmado. Levou coronhada, chute na boca. Bateram a cabeça na calçada e, depois, nem fosse tudo desastroso, ainda o enviaram preso à vila militar. O padrasto batia porque, esses menino tudo num presta. A mãe batia para agradar ao padrasto. Por isso fugiu: para não apanhar todo dia, duas vezes. Não que a vida não lhe batesse. Apanhava muito, mas em dias alternados. Na rua resistia a todo tipo de agressão: senão chega hora que qualquer um te bate. Ali, todo dia era à base de surra e choque, revista à ponta de canivete, cada orifício perscrutado, nem mesmo a polícia. Levou muito na cara, mesmo ao dizer que não devia nada, que de nada sabia. Teve cuspida na boca, levou escarrada. Até que o estupraram com o cano de uma arma. Era mais virgem em vazio algum. Lembrou a época em que para sobreviver comia cigarras recém-saídas da terra. Bebia água da chuva. Colhia frutas sazonais, caçava tudo que podia, calango fugidio, rato do Cerrado, catava ovo de seriema no mato, vasculhava restos nos ralos, vida urbana e selvagem, cosmopolita e inumana. Incertezas que enfrentou com o riso podre na boca. Tentativa de apegar-se ao “ainda” de um fim. Ouviu em um rádio à pilha, distante, na carceragem: Só pra empurrar, só pra empurrar, Eles te dão a mão, te dão a mão, Só pra empurrar. Puxou conversa com o hipotético, perguntou por que ainda estava ali. Questionou se podia sair. Ao que teve a sensação de ouvir: Só morto!

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